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ana gomes

A Filha Perdida e o ponto cego

Atualizado: 16 de jan. de 2022

Ilustrando a inconjunção em companhia de Elena Ferrante.

Dizem que quando você está fora do ritmo de leitura, basta reler Elena Ferrante que logo a fome de devorar livros te toma as horas. Verdade. Li sua tetralogia em 2017, quando fazia pouco sentido para mim ser designer e a escrita me reencontrava em meio aos astros.


De lá para cá, as palavras se tornaram fiéis companheiras e Elena, minha confidente. Só ela sabe que eu queria ser como ela e ter a habilidade de construir personagens como a Leda. Personagens que Maggie Gyllenhaal coloca em ação enquanto eu me pego lendo mentalmente seus mapas. Leda tem um ponto cego em sua cartografia natal, creio eu.


Ponto cego é a maneira como eu apelido (você não vai encontrar isso escrito assim em nenhum livro de astrologia) um determinado aspecto entre planetas chamado inconjunção. Quando você dirige um carro, o ponto cego é aquele curto espaço que escapa ao retrovisor da visão total. Em uma ultrapassagem, curva ou manobra é necessário virar o seu rosto totalmente para trás para enxergar o outro carro que está vindo e que não aparece no espelho. Assim é como eu interpreto as inconjunções no céu. Em termos técnicos, quando um planeta está a 150 graus de distância do outro, há uma inconjunção (ou quincúncio). É raro nascer com essa exata medida entre astros chamados de pessoais (Lua, Sol, Mercúrio, Vênus e Marte). A inconjunção determina dois pontos que não se comunicam entre si: como se um astro falasse japonês e o outro, inglês. Este aspecto não é tão realçado pelos astrólogos quanto as oposições (180 graus) ou as quadraturas (90 graus) entre planetas. Porém, quanto mais mapas eu leio, mais o ponto cego me salta aos olhos. São características muitas vezes complexas e geralmente paradoxais. A pessoa que nasce com uma inconjunção tem a sensação de que há algo, talvez no plano do inconsciente, que a leva a agir de certa forma, apesar de querer fazer de outra. Repetidas vezes, ela se pega desejando algo que é completamente oposto ao que precisa, por exemplo. E isso só fica mais claro quando está fazendo uma manobra, ou seja, uma mudança de rota na vida.

"Eu não sei" diz Leda, segurando a boneca da filha perdida em suas mãos. Talvez só a psicanálise dê conta de esmiuçar essa frase. Para isso, deitamos no divã a sovar nossos não saberes até que levantamos dele como uma lisa e uniforme massa de consciência. Toda uma argilosa artesania na esperança de eliminar hábitos tóxicos de nossas repetidas receitas de como-devemos-ser. A literatura de Elena e o potente cinema de Maggie têm a capacidade de desenhar alguns desses pontos cegos (ou os não saberes) em um soco só. É aí que o nosso sofá se torna mais incômodo que o divã. Quem nasce com pontos cegos costuma ter a capacidade de disparar gatilhos em nós: será que eu, minha mãe, a mãe da minha mãe, a mãe da minha amiga também não diria ou faria o mesmo que Leda?

Toda vez que eu pego um mapa com um ponto cego entre dois signos específicos, Ledas costuram a minha leitura: entre Câncer e Aquário, cabe uma filha perdida.


A busca por familiaridade, típica do nosso lado canceriano, sempre vem carregada de uma rebeldia e inquietação do nosso lado aquariano. Isso é natural a qualquer mapa, afinal, são signos que estão a 150 graus entre si na cartografia natal. Mas, quem não tem planetas nesses signos em seu mapa astral, nem sempre sente isso com a intensidade de quem nasce com eles. Quem nasce com planetas nesses signos e no mesmo grau, então, vive isso na pele. São essas pessoas que possuem um ponto cego em seus mapas e suas vidas são, em muitos momentos, atravessadas por eles.


Em uma sociedade patriarcal, Câncer é colocado como o signo maternal. A maternidade é apenas uma das formas de tradução do anseio canceriano por familiaridade — o que vai muito além de ser ou criar uma filha. O nosso lado canceriano nos estimula a buscar um lar, uma cultura, um país, um corpo ao qual pertencemos. Enquanto isso, nosso lado aquariano nos instiga a nos conectarmos apenas às pessoas que não se sentem pertencentes; aqueles que se encontram nos questionamentos constantes do que é pré estabelecido como norma. O resultado desse lado canceriano e aquariano em ponto cego é uma urgente e agonizante necessidade de reinventar a maternidade dentro da sociedade patriarcal em que vivemos. Quantos mapas ainda vou ler em que o "eu não sei" sobre o tema maternidade esconde muitas bonecas de infâncias roubadas, escondidas, perdidas? A coragem, loucura ou ousadia de viver o não-saber cabe muitas vezes às ações ditas desmedidas ou impensadas daqueles que nascem com pontos cegos. Invisíveis para muita gente, acessíveis para seus donos e donas em algum canto de sua história. Na urgência tão ocidental de julgar se é bom ou ruim nascer com esse aspecto no mapa, eu te digo que são pessoas excepcionais. Estudo elas, com gosto, no mapa do músico Thom Yorke. O que me faz pensar: quantos de nós rotulamos Ledas de creeps? Quantos dirão que Ledas são so fuckin' special?





Uma coisa me parece nítida: não fossem os pontos cegos na estrada, nos esqueceríamos de olhar para além, desconfiar dos espelhos que nos cercam e calcular a real distância que tomamos do outro. O que acaba acontecendo são manobras arriscadas nesse percurso — transgressoras, talvez. Sim, nem todo mundo deseja se mudar de lugar para que Família permaneça.


Por AnaAstros + Frames do filme A Filha Perdida, inspirado no romance homônimo de Elena Ferrante.

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